quinta-feira, 19 de março de 2015

(Parte 32) Heróis de areia


A cada movimento do navio as almas que ali estavam, gritavam. Seus temores não eram somente relacionados embarcação. Seus medos se fixavam em não encontrar mais seus amores - ou encontrar algum – não ver seus parentes mais queridos e odiados, a não enxergar mais terras, qualquer torre, casebre ou um feudo que jamais seria visto mais uma vez. Nem aqueles mais destemidos mantinham a calma. Pois achavam que um demônio estava para surgir. Só um se mantinha firme, corajoso, intrépido e eloqüente. Seu líder.
 Ele gritava com autoridade. Com sua força e pulso firme igual à de um rei no campo de batalha. O pirata praguejava contra as nuvens, com a força de vários homens, como se discutisse com a tempestade. Para ele, a mudança climática era mais que isso: era um passeio refrescante que lhe levava aos dias bons de sua vida. Seria ele louco? Ensandecido? Oh não! Era são e normal. Só queria sentir o mar forte em seu corpo. Respingos de água salgada no rosto concediam uma sensação única como o êxtase. Talvez até como o beijo e o abraço de uma mulher.
-Vamos seu bando de crias infernais, arremedos de seres pensantes! Façam o que for possível para manter esse navio!
-Ele é tão bondoso... – soltou Seton irônico.
-Mas certo ele esta em fazer isso! – advertiu Gustavo – Precisamos nos concentrar no que esta a nossa frente agora!
Os Dragões auxiliavam no que podiam. A tormenta parecia estar vencendo com todo o seu caos. Os momentos daquela situação pareciam trazer tanto medo e pânico, mas nenhum dos homens se renderia. O sangue dos piratas era a água do mar e suas vontades estavam acima de tudo aquilo. Acima de qualquer música do mundo estava o som do oceano. Eram as ondas que se quebravam como o som das trombetas de Jericó. Com uma força divina, elas engoliam e soltavam a embarcação. Como o brinquedo de uma criança travessa no meio de um lago. Um lago enorme.
-O que é esse gira e gira ai fora? – grita Valente com receio da resposta. Ele deveria ter ficado calado, mas não o fez. O que causaria um problema.
-Uma besta falante! – exclamou um homem, que por isso não consegui manter a força nos braços. Quando viu Valente, soltou a corda, aterrorizado. Era melhor se reunir a seus novos colegas: os ratos do navio. Caso contrário seria morto pelos sapatos, botas, sabres, adagas ou espadas de algum pirata.

As nuvens gritavam. O som do trovão batia como tambores de guerra. Enquanto o navio cruzava as ondas, os deuses gritavam perguntando como aquela embarcação permanecia inteira. Ou quase. Até os próprios homens que estavam nele perguntavam-se sobre como esse milagre ocorreu.
Seria tão bom se magia e espada resolvessem tudo. Mas a lâmina de Thror ou os encantamentos de Lacktum não seriam fortes o suficiente para aquela situação. E falando em certo mago inglês, ele despertou do sono induzido.
Cambaleava como um bêbado que levanta uma forte noitada de boemia. Só que por algum motivo, preferiria sair de uma ressaca a entrar nessa situação delicada e perigosa. Sua cabeça estava tão perdida, que mal sentia os seus famosos enjôos. Seriam bem vindos para ele agora. Isto já que preferiria estar soltando o desjejum da manhã do que enfrentando o perigoso clima.
E foi então que o mago notou algo que deixou assombrado. Talvez até preferisse não notar isso antes. Havia magia no ar.
Lacktum correu até o convés. Ele gritou com extremo medo.
-Dragões, preparem-se! Sinto uma magia no mar! Alguém esta fazendo uma conjuração!
O capitão Joseph gritava com o recém desperto Lacktum. Ainda o considerava um louco mais que um arcano. Assim mesmo, o jovem inglês ruivo soltava palavras de ordem.
-Rapaz, continua dominado por algum espírito do mar?
-Não senhor! – falou isso, fitando o comandante com olhos compenetrados. Cheio de fúria. Mas não contra Joseph – Há magia aqui! Eu sei!
Gritando isso, uma grande força cruzou o ar. Ela atingiu a água como a mais imensa rocha jogada em um pequeno rio. Não fosse por pura sorte – e dessa vez, só contaram com essa dama – teriam sido completamente tragados pelas ondas colossais do oceano. Não havia como medir aquela força tão poderosa. Magias ainda teriam dificuldade de obter um tamanho próximo da realidade daquelas forças marítimas que se elevavam próximo do navio. A Arte estava ali. Era acima do normal, o que demonstrava que aquilo era parte uma magia ancestral.
As ondas do mar rodopiavam. Não mais em um sentido só, porém com mais força. O rodopio começou a se tornar um círculo concentrado, quase que em forma de espirais. Gigantescas ondas cruzavam as bordas daquele movimento marítimo, como se fossem nada menos que insetos. Um redemoinho, um verdadeiro funil surgiu naquelas águas no ponto exato onde a força havia surgido. E mesmo assim parecia tão magnífica e tão maligna aquelas linhas marítimas em forma de demônio.
Foi quando os Dragões perceberam que algo se agitava dentro da água. Era de um tamanho imenso que causava arrepios aos mais cautelosos. Thror notava algo no ar. Como quando ele tinha seus momentos de brilhantismo. E agora causaria o temor nos corações dos tripulantes.
-É um kraken!!!

Na era mitológica, Perseu encontrou junto às rochas do mar da Etiópia, uma mulher. Seu nome era Andrômeda, filha do rei Cefeu e da rainha Cassiopeia. Ela estava ali presa a correntes poderosas, pois um oráculo havia falado que só depois entregarem sua própria filha ao monstro que assolava aquelas terras, a fera seria aplacada. Um monstro marítimo tão grande e poderoso que devorava navios e devastava todo o litoral.
Após isso, as águas borbulhavam com força. A cauda e os seus tentáculos rasgavam os mares. Havia um dorso, coberto de escamas afiadas e aguçadas. Destruía navios com suas mandíbulas. Sabendo que não derrotaria a abominação saltou no peito da criatura, cobriu os olhos com o braço esquerdo, abriu um alforje e ergueu a cabeça da Medusa, uma das três Górgonas. Tal fera afundou no oceano transformado em pedra pela maldição da mulher com cabelos serpenteantes.
Nunca existiu somente um kraken, porém. Poucos sobraram da era mitológica. Sua força estava a serviço dos deuses olímpicos, mais precisamente, aqueles relacionados aos mares. E ainda assim, poucos com a força daquele que Perseu derrotou. Agora havia um deles do lado esquerdo do navio.
A parte de baixo era semelhante à de um ser marinho imenso. Uma imensa massa de tentáculos brotava da água. Os músculos rígidos surgiam por entre as escamas e seu dorso monstruoso. Finos, aqueles membros, mas ainda assim poderosos agitavam a água. Cruéis e dilaceradores se acertassem o navio.
Thror empunhava sua espada com a ponta para baixo, enquanto segurava o escudo na frente. Seus dentes rangiam. Era medo ou excitação? Nem ele sabia.
-Por todo o Olimpo! Nós iremos passar!
Foi quando Lacktum alertou o grupo do óbvio:
-Ele irá atacar agora.
De repente um dos tentáculos desceu com a fúria de um furacão. O navio balançou para o lado. Farpas de madeira foram lançadas pelo ar.
Todos se seguravam e se mantiveram no navio por enquanto. Pelo menos por enquanto. Era a hora de revidar.

No momento em que um golpe acertou o navio, Seton se prendeu ao chão com a foice, já que ele inclinou muito para o lado esquerdo. Gustavo tinha sido mais rápido prendendo uma corda na sua cintura, e a outra ponta, em um mastro. O mago e o guerreiro deslizaram até a beirada do navio. Um escorregão os levaria a cair no mar. Thror riu.
-Do que esta rindo? – gritava e perguntava o mago ao guerreiro.
-Não sabia se era medo ou excitação! Mas agora sei que é excitação, pois quero algo bem forte para beber!
-Isso não significa muito! Quando se esta com medo de chegar a uma bela dama, o melhor amigo nesse momento pode ser um bom gole de vinho!
-Ou um bom copo de rum! – gritou e sorrindo com cara de louco o grego. O inglês retribuiu com um riso tão ensandecido. Gustavo gritou de raiva, olhando para eles.
-Se vocês continuarem assim vamos virar esse navio! Graças às conversinhas sobre bebidas! Tem uma fera mitológica nos atacando – falando isso, envergou o arco.
Com os pés fixados na madeira ele conseguia o apoio necessário para tentar disparar. Tiro de sorte qualquer um diria. O barco voltava a posição inicial, mas continuava balançando. Isso dificultava a soltar o projétil. Sem pensar nisso, o paladino colocava duas flechas no arco e segurava a corda com toda a sua força. O disparo tinha que ser bom. E foi!
As flechas foram disparadas bem alto. Seu intento era que mantivessem a força, fixando sua ponta nas escamas, flutuando como borboletas cruzando em tempestade. E isso ocorreu para espanto de todos. Isso causou uma reação da criatura. Era um rugido de raiva.
Ela se no navio em si. Devastando mais um pedaço dele. E a embarcação era forte. Pois se outro navio teria afundado. Golpes como aqueles pareciam pequenos tornados quebrando as ondas. Graças aos tentáculos potentes. Era uma monstruosidade.
Agora o navio estava sendo tragado pelo redemoinho. A força das águas se tornava maior como um potente furacão. Eles permaneciam na borda do fenômeno. Não iriam se mantiver ali para sempre.
Com os Dragões de pé, - já que não ficava mais inclinado de forma forçada – Joseph se mantinha no leme. E havia se mantido ali, desde o começo. Parecia uma torre forte e solida que não desmoronaria tão facilmente. Com a força de um batalhão.
-Praga! Trovões! Espadas infernais! Homens se mexam, tenham força e mantenham suas cabeças frias! O navio não deve tombar! Pois se o fizer, arrancarei suas línguas e olhos para permanecerem perdido por todo o Hades, caindo no Tártaro ou no Estige!
Só que mesmo com os pedidos gentis de Joseph, os homens temiam aquela criatura. E que outros modos deveriam agir? Aquele monstro parecia brincar em uma bacia de água, enquanto o Salva Ventos era engolido pelas ondas do mar. Seus espíritos quebrados, partidos. Não sabiam o que fazer.
Os únicos loucos, desvairados e inconseqüentes naquele navio eram denominados Dragões da Justiça.
Suas lâminas estavam prontas para o novo ataque que ocorreu em seguida. O tentáculo parecia formar um imenso punho cerrado, quebrando pedaços de madeira avulso próximo do leme. Parecia melhorar a cada golpe. A precisão e a destruição pioravam.
Thror ergueu seu corpo no ar. A espada para trás do homem, com a finalidade de cortar o vento com um golpe preciso. Terminando o salto em direção ao membro do kraken, o corte atingiu aquela parte do corpo monstruoso.
-Vamos por partes! – gritava o guerreiro.
Lacktum preparava as mãos com correntes de pura energia. Empurrava as luzes com dificuldade no ar, afinal, além do mar poderoso que os traziam a um redemoinho, as gotas da chuva atrapalhavam mais ainda a conjuração. O peso de seu corpo aumentava ainda mais com a força da água. De qualquer forma ele a lançou, com extrema dificuldade. Acertando o tentáculo atingindo anteriormente pelo grego.
Aquele tentáculo ficou inutilizado e o corpo sofreu o impacto.
Gustavo novamente soltou uma flecha em direção ao que seria o peito. Dessa vez ela não surtiu o efeito esperado. O paladino preparava novo projétil.
-Onde arranjou o arco? – gritou, perguntando o mago.
-Compre na vila próxima da cabana de Iliana!
Van Kristen mostrou um ar de surpresa que guardou até aquele momento.
-Jurava que preferiria espadas do arco!
-Sim! Mas a oportunidade se mostra melhor agora para um arqueiro! E pare de falar! – falou ele repreendendo a si e ao colega.
Havia também o druida com sua foice, ironicamente, calado, braços estendidos ao alto. Por qual motivo ninguém sabia. Estava assim desde o primeiro momento em que aberração começou.
-Pare de fazer bobagens Seton! – soltou de forma quase gutural o guerreiro chutando o membro do monstro.
-Você ainda vai me agradecer! Agora, deixe-me concentrar.

Novo ataque da besta de origem marítima.
O tentáculo devastou todo o mastro principal. Não que ele fizesse a diferença naquela atual situação. Porém, se sobrevivessem, seria necessário.
Com um segundo chicote em forma de parte do corpo da monstruosidade, surgiu um golpe. Ele foi rechaçado.
A lâmina de Thror estava ali, como um relâmpago. Prendendo o avanço daquele membro com sua espada pequena, com um encanto pelo menos. A dor era palpável na criatura. Não era só raiva nela agora. Até aquele momento, o kraken tinha cinco tentáculos – e só um deles foi inutilizado. Com o navio sendo arrastado cada vez mais para o redemoinho.
Aquele momento parecia crítico. Isso ocorria, já que sua lâmina não suportava mais o peso do membro. Mesmo com a força ao máximo do guerreiro ou a arma mágica que possuía. Seus músculos enfraqueciam, o corpo pesado pela água da chuva e do mar também. As sandálias já desprendiam. Ele estava chegando a exaustão. Por pouco, seu corpo marcado não seria lançado no oceano.
Um rugido de trovão foi escutado, estourando o céu com sua luz. Era Seton manipulando os raios como serpentes. Com o devido cuidado, mas desafiador.
-Era isso que fazia! Rwy'n rheoli mellt fel seirff i lawr! Ers i mi yn trin beth sy'n mynd a beth yn llawer uwch ein pennau!
O golpe de serpentes voadoras e luminosas percorreu o ar com a força da própria tempestade. Havia atingido o membro que Thror segurava. Com isso, por alguns momentos, o ser foi lançado para trás, mas não longe o suficiente.
-Nunca mais zombarei de sua fé! – gritou um mago ruivo satisfeito – Mas voc~e continua parecendo um louco de foice!
-Um louco de foice e com relâmpagos que controla em suas mãos!

Mais um golpe e o membro atingido por Seton tombaria. Assim como o anterior. Nesse mesmo momento, a fileira de dentes perigosos do monstro se aproximou do navio. E como uma serpente, seus dentes afetaram a estrutura, Partiam boa parte da embarcação. O som da madeira se partindo junto aos gritos da tripulação. Era a dor unida ao desespero.
Um pouco mais e a perna de Lacktum seria esmagada junto ao monte de carne que antes eram alguns dos piratas. Eis que o mago age de forma ousada: pula em direção ao monstro.
Seu salto quase foi interceptado por um dos tentáculos monstruosos do ser marinho. Mas com o corpo esguio que possuía – e a sorte de um animal em fuga – nenhum dos imensos membros lhe fez qualquer mal. Então, caindo entre os turbilhões, o arcano prepara a magia com dificuldade.
Enquanto isso, os aventureiros do grupo lidavam com mais um dos membros daquela massa bruta imensa de força. Ela, a criatura, estava começando um golpe constritivo contra a embarcação. Lembrando uma serpente poderosa envolvendo uma lebre, o navio era a sua presa. Seu abraço profano fazia estalar com força. Cada barulho, cada rangido, fazia a esperança sumir, como uma vela ao vento forte. A água se esgueirava mais e mais nos orifícios do navio. Daquele ponto em diante, o Salva Ventos estava para sempre perdido. Os homens ignoravam isso, preferiam enfrentar o oponente que surgiu das águas, antes que o dano fosse maior. O navio era importante, mas mais ainda as lembranças que compartilharam nele.
O guerreiro Thror esbravejava como iria decepar cada parte daquele imenso, mas nem ele acreditava na vitória com força. Foi quando golpes bem sucedidos naquele membro bizarro foram notados pelo grego. Deveriam ser os ataques de Seton pelo estado em que se encontrava aquele pedaço. Era a chance do guerreiro.
A espada se levantou com a velocidade de um demônio fugindo do Inferno. O corte não foi certeiro, mas forte o bastante para aquela gelatinosa aberração perder mais um membro. O tentáculo caia com força no mar, mas mal se escutava o som da queda devido ao som ensurdecedor dos trovões.
Os poucos, homens que sobreviviam aos golpes do monstro marinho, depositavam suas esperanças nos Dragões da Justiça. Eles eram jovens em comparação aos piratas, mas em seus peitos corria o calor de verdadeiros de heróis, mesmo que não admitissem. Aqueles homens do mar se inspiravam com atitudes dos rapazes. Parecia que eles lutariam até o amargo fim. Parecia que os deuses dos mares o testariam com toda a força.
-Ergam essas cabeças cheias de estrume!
Um xingamento, e os golpes precisos dos valorosos Dragões. Era tudo que precisavam os homens de Joseph.
-Thror! Onde esta o mago? – soltou o paladino.
O grego balançou a cabeça em negativa
-Ele sumiu... Eu acho que ele...
E antes que terminasse a frase ouviu um grito de glória, como se alguém tivesse conquistado o topo do mundo. Lacktum havia cravado sua faca no corpo do ser marinho. Estava pendurado naquela coisa.
-Eu acho que ele é o miserável de cabelo escarlate mais sortudo de todas as terras e reinos. Mas como...?

Lacktum se segurava com extrema dificuldade. O calor, misturado com a força da criatura, faziam o mago se machucar, e muitas vezes, escorregar. Especialmente sua perna esquerda, que sobreviveu a uma das investidas. Mesmo assim o arcano usava a adaga que ganhou de seu pai como uma estaca, contornando aquele corpo da besta. Havia dificuldade em conseguir manter-se fixo em cima da pele. Se é que aquilo era uma pele, por assim dizer.
O cheiro dos peixes mortos de algum porto inglês fedorento, misturado ao cheiro podre de um bando de goblins mortos, não chegaria perto do odor que sentia naquele momento. Não fosse pela força de vontade inerente no rapaz, ele teria sido tragado pelo poderoso oceano. O vento poderoso do mar estava forte, quase cortando seu rosto. Ele contornava o imenso ser até alcançar o que se assemelhava vagamente o que seria um rosto. Lacktum conseguia ver o navio e parte da face do kraken.
Com uma mão, sem muita força devido ao vendaval, ele conjurou símbolos arcanos. Até mesmo proferir as palavras mágicas era difícil.
-Come to me... Lightning... Fulmine... My opponent...
E no mesmo instante, ele saltou na direção do navio. Quando isso ocorreu, um relâmpago obliterou o mitológico ser marinho. Seus tentáculos em forma de amarras no navio soltavam lentamente as velas e a estrutura. Os pedaços dele tombavam na água com força, deixando livre – por completo – o despedaçado Salva Ventos. As esperanças foram renovadas em Lacktum, pois pelo menos agora eles teriam maior chance de sobreviver. Mas nem isso o mago conseguiria.
Quando pulou em direção ao navio, o mago foi pego pelo tentáculo gigantesco. Talvez por malícia ou não o monstro, levava Lacktum. Ele lutou e enfrentou com todas as forças o ser enorme, mas foi tragado. Sendo levado com força, o mago olhava para cima de forma forte para tentar contemplar o Salva Ventos. O que observava, no entanto, era o vazio.
-Lacktum! – gritavam todos os amigos com temor, por o amigo havia sido devorado pela força dos mares. Havia perdido de vista o corpo do mago. Pediam aos deuses – mesmo os que acreditavam em um único deus – que algum fenômeno salvasse o inglês. Pelo jeito não seriam atendidos. O mago estava perdido.
Arctus, que nesse tempo estava auxiliando, mantendo o navio inteiro subiu finalmente as escadas. Essas também estavam despedaçadas, devido aos golpes do kraken. Com esforço, o padre alcançou a parte superior.
Ele observou que a esperança estava apagada na face dos homens. Cada qual com um ar de derrota único, mesmo obtendo vitória sobre o monstro. Não compreendia o que ocorria. Como uma pessoa que se refugiou da tempestade e vê um campo destroçado.
-Por quais motivos estes rostos tão desolados?
A tempestade batia em seus rostos e costas, criando nos heróis uma sensação horrível. Como se a verdadeira tormenta estivesse em seus corações. Não seriam mais como eles eram antes ao que tudo indicava.
Quando Gustavo finalmente iria falar o destino de seu amigo arcano, foi brutalmente interrompido. O casco do navio finalmente partiu. O som oco da madeira estalando em dois, todo um pandemônio no meio do redemoinho marítimo finalmente tragava Salva Ventos. Gritos abafados pelo mar bravio e furioso. O capitão se segurando pedaço de madeira que não tinha função alguma. Homens jogados na dura madeira, com corpos quase dilacerados, as esperanças destruídas e a vida... As vidas extinguidas como um castelo de areia na praia. Isso não era parte de uma brincadeira de criança.
O pedaço de madeira da proa voou em direção ao braço do forte Thror, quase o partindo ao meio. Quando Arctus iria o auxiliar, foi atingido por um jato de água que quase o partiu ao meio o lançando para fora do navio. O paladino, mais veloz, havia se prendido a uma corda e saltado resgatando o jovem clérigo. Uma verdadeira aposta de sorte. Se eles iriam sobreviveriam não sabiam mais, já que o navio não resistiria.
Só que uma coisa mudou pelo menos, já que o redemoinho estava parando. Havia uma chance mínima de vitória. Havia uma chance de sobreviver.
Enquanto estivessem vivos, haveria uma esperança. Sempre que um homem tem consciência que realmente vive, há uma chance de mudar tudo. Tornar a dor em uma força maior. Como um relâmpago o sangue fervia com vontade, assim, conquistando o que se quer. De ir contra as probabilidades. Acreditando. Mesmo contra todas as forças. Não é o corpo, mas sim a alma e o coração que nos mantém em pé. E isso independente deles estarem estilhaçados e triturados.
Quantas pessoas, nesses momentos de desespero, entregam ao medo. Mesmo os mais instruídos, que devoram livros, abandonam o que é caro para si. Sendo que isso fazia parte de suas vidas
Eles iriam sobreviver à tormenta. Ou o capitão não se chamaria mais Joseph.

-Acorde careca!
Thror ouviu isso de um Seton encharcado, em cima de leme. Era algo perturbador ver o rosto abatido do druida. Parecia ter visto o Inferno no mar. Ele mesmo não deveria estar muito diferente.
Já era noite e não havia mais uma nuvem sequer cobrindo o céu. O que fez todos poderem admirar aquele céu noturno com estrelas cativantes e nostálgicas. Nem parecia que uma tormenta se abateu sobre aquele trecho do mar.
O grego sentia tudo em si dolorido: a cabeça latejava, um braço encharcado de sangue pelo golpe surpresa no braço, o corpo com alguma parte das costelas partidas, ele achava, além de várias outras partes que não conseguia lembrar o nome.
Estava em de um pedaço de madeira que um dia deveria ter sido um deque. Uma grande metade afundada naquela água fria. Assim como o próprio corpo, já que nem ele estava completamente ali em cima daquele lugar. Ele boiava com as pernas, assim como os outros membros de Salva Ventos.
Viu primeiro onde se localizavam seus amigos e aliados. Todos vivos. Alguns até mesmo com certas escoriações e cortes, mas ainda assim respirando. Após notar o que ocorreu com eles começou a olhar para os piratas. Todos que sobreviveram estavam em pedaços de madeira. Cinco ou sete no máximo. Entre eles, Yuri, que chorava. Suas lágrimas eram fortes e cheias de uma dor dilacerante.
-Yuri! – gritou o guerreiro, com força de alguém que enxerga um ente querido e quer o reconfortar – o que houve meu amigo? Qual o motivo de seu brando?
Apontou então, o imediato, para certa área naquele mar sem fim. Foi quando notou aquela figura como uma ferida enorme.
Os cabelos negros caídos naquela água como se fosse parte de um tecido antigo sendo lavados de modo a encharcá-los. O copo todo boiando como uma madeira daquele navio. Algo não difícil de imaginar, visto que até suas roupas pareciam ter adquirido a cor de Salva Ventos. As mãos estavam machucadas, em carne viva. Devido a sua tentativa de manter o navio inteiro durante a tempestade, ou quando revirava os escombros no mar, ou colocando cada pessoa que colocava em um lugar que considerasse seguro no meio dos restos do desastre... Era o sangue de um lutador. Um guerreiro no melhor modo de falar. Sua espada longa, ainda embainhada, tava claros sinais de enferrujar naquela água salgada, mas agora era um símbolo de força do capitão. Nunca a havia sacado para punir um homem sequer, tudo sendo resolvido na conversa, em uma briga ou um belo gole de bebida. Era o pai que alguns daqueles homens jamais teriam conhecido. A camisa branca estava rasgada, tentando estancar o sangue que jorrava do braço de um deles. Nem ligava para uma verdadeira estaca de madeira atravessando seu peito inteiro. Deveria ser de uma parte do mastro principal. Mesmo fragmentado, havia o atingido em cheio, o debilitando, minando suas últimas forças, acabando com o último sopro de vida dentro do coração daquele excepcional homem que navegou marés com coragem e a vontade de um aventureiro incauto, mas cheio de sonhos e paixões. Paixões que o mar agora tragava para sempre. Ele entregava e também tirava, alguns navegantes e pescadores diziam. Entregava e tirava...
Joseph Boas Língua estava morto, e como um pirata, morreu junto ao navio. Até o mar o rejeitou, visto que não afundou como boa parte da embarcação. Yuri falou, tentando parecer forte, que o gosto de seu líder deveria ser ruim para o oceano. Não conseguiu enganar ninguém com aquelas lágrimas na face.

-O capitão pegou um por um. Os levou a cada escombro, mesmo sem quase nenhuma força... Colocou naquilo que ainda flutua de Salva Ventos... Ele... Ele se sacrificou para nos salvar.
Aqui nesses trechos, escrevo sobre o triste fim de Boas Línguas. Um capitão que foi contra o típico costume de afundar com o navio, pois o próprio mar o rejeitou. Só que conseguiu ser mais honrado do que qualquer outro, esquecendo de sua vida para salvar a da tripulação que sobrava. Salvar vida sempre tem um grande poder para mudar o mundo, mesmo que seja um pequeno pedaço dele.
Cruzando a água, Thror nadou até Joseph. O virou para ver corretamente a face do salvador. Seu corpo, branco como um fantasma. Antes fosse. Os olhos abertos foram prontamente fechados pelo grego, que em seguida depositou uma moeda sobre um deles.
-Uma moeda para o barqueiro. Que Poseidon interceda por você meu caro.
Mesmo na água e exausto, o guerreiro parecia se lembrar de uma música. Algo fúnebre. Algo que simbolizava partida.

Você não nos disse adeus
Agora as suas ações estão feitas
Siga com o barqueiro para os Elísios
Siga para um lugar onde finalmente encontre alegria

Eles nadavam para longe, parte carregados pelo mar, parte pela força de seus braços. Rápidos e com força, os Dragões da Justiça e os homens de Salva Ventos tentavam alcançar o litoral. Estranhamente, encontravam-se mais próximo do que antes, constatou Yuri. Talvez fosse um efeito colateral da magia que evocou o kraken. Isso não importava mais.
Era possível ver ao longe, em um horizonte não tão distante, as chamas de tocha sendo acesas. Uma pequena vila com certeza.
Um ânimo surgiu nos rostos daqueles. Eles estavam completamente deprimidos, mas ainda poderiam alcançar à costa. Uma chance de honrar aqueles que caíram durante combate contra o mitológico monstro. Tentar esquecer aquilo parecia ser impossível para eles.
Foi quando, pensou o druida, onde estaria Valente? Será que estaria junto com o mago fundo do mar? Eis que de repente, no balde, o estranho animal falante navegava. Com ele, usando uma colher de madeira. Cantarolando:

Eu sempre serei um passageiro
Sempre serei aventureiro
Quem não quiser viajar
Nunca verá o mar

Thror riu, mesmo com toda força exaurida da tragédia no navio. Ele havia se lembrado de uma música que o grego cantava sempre que estavam em viagem pelos mares.
-Onde ouviu isso, pequena lebre?
-Não me lembro grande careca! – apontando a colher contra Tzorv de forma ameaçadora – E não sou uma lebre, da família dos roedores. Apesar de que um primo meu se envolveu com uma ratazana... Isso não importa! Respeito ao meu sangue nobre humano!
O enorme guerreiro agarrou o diminuto amigo. O abraçou.
-Estou grato pelas nereidas terem lhe poupado! Como sobreviveu rapazote?
-A sorte dos animais. Mas confesso que não é só meu primo que conversa com os bizarros roedores. Eles são bem mais sábios do que aparentam dentro de um navio. Digam-me, onde esta o rabugento e que tem maresia, Lacktum?
Novamente, uma nuvem caiu nos rostos dos Dragões da Justiça. Haviam se esquecido de seu líder e aliado. Alguém que depois de tantas discussões finalmente se tornou um amigo.
-Lacktum Van Kristen se foi – soltou um pesaroso Arctus.
De repente Valente, o mais contido, chorou, como se fosse simplesmente um filhote de sua espécie dentro daquele recipiente que usava como embarcação. Quem olhasse novamente o céu estrelado, notaria uma estrela cadente naquele instante. Será que alguém fez um pedido? Talvez. Seria bom.

Yuri pegou algumas madeiras para depositar o corpo. Um caixão improvisado para um capitão tão valoroso. Só ele sabia o motivo de seu amigo e capitão ser chamado de Boas Línguas. O verdadeiro. Era até engraçado, se não fosse trágico.
Desde criança, o ainda não imediato, órfão, viveu junto ao eloqüente e forte Joseph. Um rapaz carismático que manipulava adagas como ninguém, malicioso e com uma lábia única. Nada próximo do que o seu bom jeito com as mulheres.
Ele dizia que uma mulher feliz em todos os portos o fazia um homem de boa sorte. Isso era pouco, mesmo assim, para o grande conquistador. Viajou pelos portos do Egito, até a Inglaterra, sempre atingindo vários corações que suspiravam. Nunca magoou uma moça, mas jamais se entregou de alma a ninguém. E era bom. Não queria trair ou ser traído, muito menos magoar ou ser magoado. E o gosto do seu beijo seria bom, assim como o da língua. Uma língua com o gosto de vários lugares, que atendia os anseios femininos. Boas línguas então foi o nome entregue a ele devido a isso. Criação da tripulação.
Sabia, porém o amigo e confidente Yuri, que isso não era toda a vida do jovem Joseph. Ele era valoroso com os companheiros e sempre piedoso com aqueles que erravam. Não importa se agia errado demais, mas quase sempre o acusado seria perdoado e poupado no final se merecesse. O mundo era menos assustado para os amigos dele. Como se uma aura estivesse permeando seus companheiros de viagem com toda a vitalidade que só ele possuía. E já não tinha mais. Um corpo. Só era isso agora.
Lembrou-se de tudo quando era uma criança e o que viveu até ali. E quando decidiu entrar de vez com Joseph na vida de marinheiro... Em uma nova vida. Seriam reis, ou melhor, viveriam como um. Moedas de todas as cores, tipos, tamanhos e reinos. Enriqueceriam tanto que não ligariam mais para o seu próprio peso. Ficariam obesos de tão cheios seus bolsos e barrigas. Sonhos juvenis que foram retirados de ambos com a morte.
Dizem que não foi à aventura, nem as mulheres em todos os portos pelo quais passou. Muito menos a vontade de viajar... Ele queria ser pirata por causa de um coração partido. Uma desilusão amorosa foi à causa de suas aventuras.
Ah, amor que nos devora. Amor que nos salva e condena. Ah, amor.
E tudo terminou ali, no mar. Que era como o amor. Pois devorava. E tudo que tomava era seu para todo o sempre. Tão sublime é o mar, tão terrível é o amor. Tão poderoso é o oceano, tão linda é a paixão.
Finalmente, Yuri, o imediato, o arcano, o amigo, o irmão, o confidente, o aliado, se despediria daquele que tantas vezes o salvou. No Cairo ou em Roma. Ele se fez lembrar-se de quando quase foi enforcado por culpa de Joseph em York. Mas foi salvo pelo mesmo que lhe causou o problema.
E agora a última homenagem.
O gesto final ao capitão. Uma passada rápida pela cabeça, como um amigo, um irmão. O choro incontido, a alma rachada. Parte de si. Adeus não é o correto. Até logo ou até mais. Seriam as últimas palavras de Yuri para Joseph Boas Línguas.
Com braçadas curtas o mago e imediato foi se afastando pouco a pouco. Com um pesar na alma, ele finalmente se afastou. Não tão distante ainda para ver deixar de ver a forma de seu antigo líder. Agora, teria que auxiliar seus amigos do Salva Ventos. Tirar para sempre de suas memórias o trágico fim do sonho.
Ele havia pedido aos outros que se afastassem do corpo, já que agora não teria necessidade de todos permanecerem tanto tempo na água. Alguém poderia morrer por conta do frio. Por isso pediu aos seus companheiros aos Dragões da Justiça que se adiantassem.
Uma última olhada para o capitão. Para o amigo. Eis que surge uma figura com traço de mulher, mas também de demônio. Como estava longe, Yuri não sabia definir seus aspectos. Só que possuía um par de asas de couro como as de um morcego. Seus olhos faiscavam. Vermelho sangue
O arcano pensou em reagir, mas ouviu vindo do nada:
Quem compartilha do sangue da bruxa, sofrerá da maldição
Yuri parou.
Diferente do que ele imaginou o demônio não pegou o corpo e voou com ele. Afundou com tudo naquele mar calmo e negro. Em um salto só como um peixe. Fitando a tudo como presa. Nem na morte Joseph teria descanso.
A última visão do imediato na noite em que Joseph morreu, foram àqueles olhos. Vermelho sangue.

Ele via Salva Ventos sumindo na turbulência do mar. Queria morrer ao lado dos amigos. Não ali, não sozinho. Sua última família. Seus entes queridos. O sangue de quem passou a aprender amar.
Como havia ficado tão sentimental? Era tão único isso agora. Cheio de raiva e fúria antes. Agora se preocupar em morrer sozinho não era comum. Não para ele. Um mago com o sangue do norte. Norte. Estavam próximo da terra dos seus ancestrais.
Mas mesmo com o arcano possuindo muito poder e não ter usado nem metade contra o kraken ele não sabia como controlar a água. Uma pena, já que ninguém pensa nisso. Pelo menos entre os abridores mais ávidos por poder.
Só quem já lida muito cedo com as magias referentes à água entende corretamente sobre a magia, que muitos consideram ter o controle sobre a vida.
O corpo caia mais e mais dentro do manto sombrio do mar. Cobrindo Lacktum com ele. Uma mortalha apropriada para o lugar onde estava. Deve ser doce morre no mar. Nas ondas escuras do mar.
Enquanto descia mais e mais naquelas ondas frias e fortes que banhavam o litoral dos homens nórdicos, escutou uma voz. Um sussurro. Não conseguia saber o que falava.
Talvez fosse um delírio. Ou quando os homens fala que sua vida passa como um relâmpago por seus olhos. No caso deveria ouvir fantasmas. Ecos de um passado distante. Alguém que gostava muito, um ente querido, ou o amor da sua vida.
Afogava-se. Um pouco mais a cada batida de seu coração, que parava tão lentamente. Os movimentos acabavam, o corpo enfraquecia, enrijecia. Que inferno era aquilo para ele.
O deus Aegir[1] deveria ficar contente em roubar almas de Odin. Diferente de Njord, essa divindade das tempestades não ligava tanto para os mortais. Só para se satisfazer. Mas será que o mago iria alcançaria à famosa Valhalla[2]? Não era um guerreiro e nunca seria.
Engraçado, pensou, enquanto se afogava. Jurava que havia uma mão tentando o alcançar.
Mas não conseguiu.



[1] Deus nórdico do mar e das tempestades em especial. Vive em Midgard (nesse caso, se referindo a Terra – Gaya), no mais profundo ponto do oceano
[2] É o lar de todos aqueles que perecem em batalha, segundo os costumes nórdicos.

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