No navio, Thror e Gor treinavam com pedaços de madeira. Assim
não se feririam de verdade. Mas mesmo assim, ambos precisavam mostra um ao outro
toda a força de seus corpos. Os homens apostavam em qual dos dois e Halphy
recolhia o dinheiro, é claro.
Após muita lutar, Gor venceu. E Halphy ganhou uma boa grana
com isso.
Os dois então se colocaram na beirada do navio suando como
dois cães que são atirados ao mar. Eles riam, como se ao invés de estarem
treinando, estarem passeando por um belo lugar. A ladina só pensou consigo
mesmo, que aquilo só poderia ser coisa de homens.
O guerreiro inglês então olhou para a cicatriz na cabeça de
Thror e perguntou:
-Onde arranjou essa marca homem?
-Não sei... Mas nunca pude reclamar dela. Pelo menos não dói.
-Só por não se lembrar de como a obteve não significa que
seja uma boa coisa. Feridas nunca são. Talvez quando você souber o motivo dessa
marca vai doer mais do que imagina.
-Mas pelo que meu pai me disse era boa sim.
-Seu pai?
-Sim, meu pai adotivo.
-Que coisa... E qual é seu nome?
-Orfeu.
-Como das antigas historias gregas – Gor ficou de costas para
o mar e continuou a falar – Você sabe que ele perdeu tudo que amava.
-Pensei que ele tivesse perdido só a mulher.
-Mas era isso que ele perdeu – se aproximando do grego, Gor
falou para ele – Algumas vezes, é bom não se lembrar de certas dores, e de onde
elas vieram.
Então, o inglês foi andando calmamente em direção ao seu
quarto. Halphy foi em direção do grego.
-Sabe que até que ele tem razão Tzorv. Se você não se lembra
do que ocorreu com você não ficará triste com as dores passadas. Viu só? Não é
de todo mal não ter memória de seu passado.
Thror se colocou na frente da jovem em um salto só. Parecia
ameaçador. Mesmo não sendo tão serio quando precisava.
-Se você tivesse um filho... Ou uma mãe que amasse muito... E
nunca soubesse dele ou dela... Até ser tarde demais, você se sentiria bem
assim?
A jovem se calou imediatamente.
O mago de sangue nórdico já estava acostumado ao navio, e o
seu vai-e-vem não incomodava mais seu estomago. Foi se deitar em sua cama
improvisada com a finalidade de assim ter uma boa noite de sono. Não foi o que
houve.
Ele nunca esteve ali, mas
reconhecia muito bem aquele lugar. Era um devaneio que sua mente criava, pois,
não era realmente seu castelo. Fragmentos de uma memória corrompida. A dor e o
sofrimento criaram aquela paisagem ilusória que lhe trazia tanto jubilo... E
trevas.
Era um dia que ele
conhecia bem. Um dia nublado, cheio de nuvens negras. Nuvens que pressagiavam o
fim dos tempos. Tempos felizes para Lacktum. Tempos em sua casa e terra natal.
Cada nuvem criava um temor no coração, pois ocorreu naquele chão, que escorreu
o sangue de inocentes.
Ele se lembra de sentir
a agonia no coração quando acordou. Como se alguém atravessasse uma lâmina em
seu peito, sem que ninguém tivesse adentrado o seu quarto. E essa arma
dilacerou seu coração como se acertasse os seus sentimentos por seu pai, por
sua mãe, sua irmã e sua amada. Aquilo que muitos chamavam de uma, agonia no
coração, mas que muito atendemos tarde demais.
Mesmo assim, despertou
pensando em ir até a casa de Lirah Lugarao’Céu. Colocou uma roupa bem simples
de passeio, com suas botas de couro surradas e o cinto que ganhou de presente
de seu pai. Parecia tão feliz, mas a agonia no coração o consumia. Seus pais
estavam bem: ele os havia visto a mesa de café. Quando passou por eles, sua mãe
soltou, com um sorriso resplandecente como o sol. Perguntou ao filho apressado,
aonde iria. Verei minha amada hoje e comerei em sua casa foi sua resposta
enquanto passava correndo pela sala. Enquanto isso, os pais riam pela atitude
frenética e feliz dos jovens amantes.
Era só sua alma
tentando lhe pregar uma peça. Seu mau agouro, sua agonia, não seriam nada. Ele
se espantava demais com historias de magos e bruxas, presságios e oráculos.
Seus pais estavam bem e com certeza veria o sorriso de sua amada rindo de seus
temores tolos.
Ele cantava enquanto
caminhava sobre a neve e a grama. O inverno estava se fortalecendo naquelas
terras, mas era primavera no coração de Lacktum. Seus pés amassavam a neve,
como crianças que correm fugindo das outras, como parte de uma brincadeira. Seu
rosto mal sentia o frio daquele lugar, enquanto atravessava o campo. Ele
cantava:
Oh, linda! Minha menina,
me dê a sua direção
Oh, linda! Minha pequenina,
me dê o seu coração
O sorriso da garota
fazia o sorriso dele dobrar o tamanho. Nem mesmo uma ninfa o faria esquecer
aquele rosto. Mesmo quando ela reclamava da franja natural em seu cabelo, ou
quando ele se emaranhava criando pequenos chofres em sua cabeça. Era como se
ele visse uma beleza natural, tal como um cavalo de pele branca saindo de um
bosque ou as águas límpidas e claras de um rio. Em seu coração só havia
primavera, trazida pela presença dela nesse mundo.
O campo já tinha sido
atravessado. Faltava pouco até encontrar Lirah. Ela não tinha grandes posses,
mas não se importava com isso. Menos ainda seus pais, amigos da família dela. O
que importava era acabar com a agonia em seu coração. O temor tolo que os
amantes sentem por puro amor.
Ele teria que subir a
colina e poderia ver a casa de sua amada. Aquela que trouxe primavera ao
coração do jovem nobre. Com dificuldade – mesmo para um rapaz – ele subiu a
colina com esforço, pensando em como seria recepcionado por Lirah.
Quando ele chegou ao
topo da colina... Seu coração se tornou inverno.
Sua visão mudou. Como sempre no mundo onírico,
nossa mente muda drasticamente. Com isso, nossa consciência dos fatos, de forma
aleatória. E por aqueles instantes, mesmo que seja algo real ou ficção, um
fragmento do passado ou criação bizarra da alma, é possível crer que esses
fatos são reais. E Lacktum odiava aquele pesadelo mais do que tudo na vida.
Ele viu o castelo,
agora em chamas. As nuvens negras lambiam o céu, com tons vermelhos e amarelos
provenientes do fogo que parecia vir das torres, mas para o jovem, vinham
direto do Inferno. Os casebres eram destruídos e consumidos bem mais rápido que
as torres do castelo. Surgiam gritos de crianças no meio das chamas, clamando
por piedade que não surgia.
Quem foi o demônio que
começou aquelas atrocidades? Qual o motivo de tantas mortes? Ele não recebia
respostas. Lacktum estava preso no meio do turbilhão que era o centro daquela
chacina.
As mulheres clamavam
que não tocassem em seus filhos. Elas eram ignoradas e além de terem seus
rebentos mortos, ou tomados de suas mãos, tinham seus corpos abusados pelos
saqueadores. Os velhos clamavam por suas famílias, ou suas vidas, em esforço
inútil. Mesmo os soldados não conseguiam enfrentar a força sobrenatural do
inimigo, esmigalhando as esperanças do jovem.
Lacktum estava amarrado
a um pedaço de madeira, de maneira a parecer crucificado. Suas pernas foram
feridas, o forçando a ajoelhar na neve que acabara de cair. Seu cabelo cobria
sua visão parcialmente, mas não impedia nem um pouco de ouvir os gritos e o
barulho ao seu redor. Ele preferia a morte ao invés daquilo.
Ele ouviu passos calmos
se aproximando. Pensou que poderia ser um anjo querendo o levar para o além,
mas descobriu que era o demônio que perpetrou tudo aquilo. O homem jogou ao
chão um volume esférico embrulhado em um saco de couro. Puxando o cabelo de
Lacktum, forçando a cabeça dele para trás, ele cochichou no ouvido do pobre
sofredor que o saco continha a cabeça de seu pai.
O rapaz não achou que
fosse verdade. Mas então notou que mesmo dentro do saco, vazava um liquido
negro sobre a neve. Ele notou que aquilo era sangue quando viu que não era
negro o tom na neve... Era vermelho escuro. Vermelho sangue.
Ele não agüentava mais
os gritos ensurdecedores de dor e sofrimento. Não conseguia mais olhar as cenas
demoníacas que foram forjadas ali.
Foi então que homens
trouxeram a mãe de Lacktum – cada um segurando os braços da jovem senhora –
completamente desacordada. Lacktum não achou que iriam o torturar tanto assim.
Arrastando a pobre mulher como um saco de batatas ele pedia clemência por ela.
Foi quando notou que o
homem iria cochichar novamente. Lacktum sentiu medo e ódio de ouvir aquelas
palavras que eram:
-Você é aquele quer irá
sofrer mais entre todos os do sangue Van Kristen, orgulhosos de seu poder!
Afinal, eu matei seu pai, torturarei sua mãe e irmã, mas você... Você viverá
para lembrar e sofrer.
Lacktum desperta no navio. Ele é forçado a acordar, depois de
um terrível pesadelo que remontava ao seu passado.
Foi quando segurou a adaga que recebeu de seu pai, próxima ao
peito, como se fosse uma lembrança boa. Engraçado como uma arma pode remontar a
um passado tão bom. Aquela arma foi um presente de seu pai para se proteger,
assim como seu brinco. Ele uma vez disse a Lacktum que quanto um homem o
matasse, a adaga iria brilhar como a luz de uma estrela, quando este se
aproximasse dele. Na época, Lacktum achava que seu pai era invencível. Como
pensamos, quando somos crianças.
Ele então colocou sob seus olhos, querendo impedir as
lagrimas. Então se lembrou rapidamente do dia em que a primavera se tornou
inverno. O inverno sumiu, mas deixou somente a escuridão que pairava sobre suas
lembranças.
O jovem mago se levantou. Chegou ao convés do navio. Olhando
para a costa grega que surgia na sua frente, recitou:
-Oh linda! Minha menina...